O rapaz da cadeira de rodas
Quando ela lhe perguntou pela enésima vez o que podia fazer por ele, o rapaz da cadeira de rodas disse à mãe, contrata-me uma prostituta. A voz saiu-lhe firme, sem tremer. Quase com naturalidade, pensou ele com orgulho. Andava à mais de uma semana a preparar-se, dava por si a imaginar diálogos com a mãe. A fantasiar mais com o rumo que a conversa teria depois de ele conseguir dizer a frase do que com a puta em si.
Há coisas que não são fáceis um filho dizer à mãe, mesmo um filho centauro, rapaz da cintura para cima e cadeira de rodas da cintura para baixo. As pernas pendentes e imóveis penduradas como se de roupa a secar se tratasse.
Mas a mãe tantas e tantas vezes insistia que faria tudo o que ele lhe pedisse só para o ver mais feliz, não que ele fosse infeliz, pelo menos dadas as circunstâncias e até ao ponto em que um adolescente consegue ser feliz, ou pelo menos manter-se feliz, que ele ganhara coragem e dissera de uma só vez a frase, sem interrupções ou volteios de voz.
A mãe sim, erguia barricadas contra a felicidade, reprimia cada sorriso que lhe aflorava aos lábios, como se fosse pecado. Como se fosse pecado uma mulher que três anos atrás tinha tido um acidente de automóvel em que o seu filho fora a única vítima, poder ter um naco, que fosse, de alegria. Por vezes, frente à televisão ou na conversa animada com as vizinhas os olhos ainda relampejavam, mas a face endurecia e os cantos dos lábios descaíam prontamente mal se dava conta.
E dia após dia, semana após semana, vivia o seu calvário, feito de culpa assumida e de impotência perante a situação do filho. Cada desejo que ele sentisse, cada palavra que brotasse da sua boca, ainda a frase não estava toda cá fora e já ela ia a correr tentar satisfazer essa vontade. E agora isto.
O rapaz da cadeira de rodas aguardava tenso. Só ele sabia quanto lhe tinha custado dizer aquilo à mãe, preferia mil vezes ter aproveitado uma noite, um dia, uma tarde que fosse em que ela tivesse para fora, para ele próprio via computador, no mundo que dominava e onde ganhava pernas facilmente, fizesses a “encomenda”. Mas a mãe não o largava, acordava ao mínimo ruído que ele fizesse e não se deitava sem que ele estivesse na cama, independentemente das horas que fossem. E se de manhã ele dormia enquanto conseguisse, em sonhos felizes com amigas que só conhecia de fotografia ou de filmes feitos em telemóvel, ela levantava-se e punha a casa num brinco. As olheiras que lhe enfeitavam o rosto tinha ganho raízes de permanência, mas ela não se importava, até iam bem com o sentimento de culpa.
Uma prostituta.
Claro que ele era um rapaz e não podia fazer as coisas como todos os outros rapazes da idade dele faziam, aliás ele nem podia fazer a ... “coisa”. A mãe sobressaltou-se e acalmou-se de uma vez só, o filho não queria ter sexo com uma prostituta porque pura e simplesmente não podia, o corpo era inerte da cintura para baixo.
- Mãe... – a cara do rapaz ganhou cor – pode ser ?
Se quinze segundos antes de ele lhe pedir uma prostituta lhe perguntassem se ela faria o que o seu filho pedisse, fosse o que fosse, ela juraria que sim, em cima da bíblia, torcendo o terço ou em nome do pai já falecido. Por tudo o que era mais sagrado ela juraria que iria fazer os possíveis e os impossíveis para satisfazer as necessidades do seu filho que o seu próprio descuido tinham tornado assim.
Mas agora hesitava. Uma prostituta, e para quê ?
<div align="center">- // -</div>
O rapaz da cadeira de rodas ouviu a chave a meter-se na fechadura, a mãe saíra pouco tempo atrás e ele estava no quarto virado para o computador. Fechou algumas janelas, não fosse ela entrar de rompante no quarto a perguntar-lhe se estava tudo bem e se precisava dela. Era essa a rotina ainda que tivesse ido apenas pôr o lixo no caixote. Por vezes era ele que tinha pena dela e inventava vontades que não sentia, como um sumo de laranja acabado de espremer ou qualquer outra coisa que a pudessem sossegar na satisfação de um desejo imaginário.
Quando a porta se abriu o rapaz ficou estupefacto. A D. Manuela, amiga da mãe, vinha mascarada de quê. Só quando ela fechou a porta teatralmente e deixou cair a saia mostrando as ligas e a celulite é que ele percebeu e a vontade de passar a mão pelas maciezas de uma pele feminina se desvaneceu.
Hoje, já passaram muitos anos desde este episódio e o rapaz virou homem, o peito já tem pêlos e a cadeira de rodas também é nova e já tem motor. E sempre que esse rapaz-homem quer sentir uma mulher, fecha os olhos e tacteia o teclado enquanto escreve palavras e frases impossíveis onde a doçura e a tristeza se cruzam sobre a pele morena de uma mulher.