Os trechos seguintes apresentam-se em defesa da escolha do "ideal feminino" e da "tentação da carne" para a capa da obra . É certo que há uma variedade de outros temas e personagens que serviriam de modo igualmente apropriado, sendo que o próprio título é um termo de peso, mas também é certo que, não os podendo incluir a todos numa mesma imagem, a escolha deverá recair pelos que significam um maior protagonismo ou representatividade. A minha escolha recai precisamente sobre a "Tentação de Vénus" (e mais a respectiva "queda e concretização"

) a que é sujeito Teodoro ao longo da narrativa. Como referi anteriormente,
O Mandarim é o texto mais mordaz e maroto (e impiedoso) que li do Eça neste domínio.
Haveria mais exemplos para partilhar aqui, mas creio que os seguintes chegam para exemplificar o que pretendo.
Não posso negar, porém, que nesse tempo eu era ambicioso — como o reconheciam sagazmente a Madame Marques e o lépido Couceiro. Não que me revolvesse o peito o apetite heróico de dirigir, do alto de um trono, vastos rebanhos humanos; não que a minha louca alma jamais aspirasse a rodar pela Baixa em trem da Companhia, seguida de um correio choutando; — mas pungia-me o desejo de poder jantar no Hotel Central com champagne, apertar a mão mimosa de viscondessas, e, pelo menos duas vezes por semana, adormecer, num êxtase mudo, sobre o seio fresco de Vénus.
Este já tinha colocado mais atrás, mas quero salientar que mais de metade da argumentação com que o diabo tenta Teodoro se faz em torno da
Mulher...
— Aqui está o seu caso, estimável Teodoro. Vinte mil réis mensais são uma vergonha social! Por outro lado, há sobre este globo coisas prodigiosas: há vinhos de Borgonha, como por exemplo o Romanée-Conti de 58 e o Chambertin de 61, que custam, cada garrafa, de dez a onze mil réis; e quem bebe o primeiro cálice, não hesitará, para beber o segundo, em assassinar seu pai... Fabricam-se em Paris e em Londres carruagens de tão suaves molas, de tão mimosos estofos, que é preferível percorrer nelas o Campo Grande, a viajar, como os antigos deuses, pelos céus, sobre os fofos coxins das nuvens... Não farei à sua instrução a ofensa de o informar que se mobilam hoje casas, de um estilo e de um conforto, que são elas que realizam superiormente esse regalo fictício, chamado outrora a «Bem-aventurança». Não lhe falarei, Teodoro, de outros gozos terrestres: como, por exemplo, o Teatro do Palais Royal, o baile Laborde, o Café Anglais... Só chamarei a sua atenção para este facto: existem seres que se chamam Mulheres — diferentes daqueles que conhece, e que se denominam Fêmeas. Estes seres, Teodoro, no meu tempo, a páginas 3 da Bíblia, apenas usavam exteriormente uma folha de vinha. Hoje, Teodoro, é toda uma sinfonia, todo um engenhoso e delicado poema de rendas, baptistes, cetins, flores, jóias, caxemiras, gazes e veludos... Compreende a satisfação inenarrável que haverá, para os cinco dedos de um cristão, em percorrer, palpar estas maravilhas macias; — mas também percebe que não é com o troco de uma placa honesta de cinco tostões que se pagam as contas destes querubins... Mas elas possuem melhor, Teodoro: são os cabelos cor do ouro ou cor da treva, tendo assim nas suas tranças a aparência emblemática das duas grandes tentações humanas — a fome do metal precioso e o conhecimento do absoluto transcendente. E ainda têm mais: são os braços cor de mármore, de uma frescura de lírio orvalhado; são os seios, sobre os quais o grande Praxíteles modelou a sua Taça, que é a linha mais pura e mais ideal da Antiguidade... Os seios, outrora (na ideia desse ingénuo Ancião que os formou, que fabricou o mundo, e de quem uma inimizade secular me veda de pronunciar o nome), eram destinados à nutrição augusta da humanidade; sossegue porém, Teodoro; hoje nenhuma mamã racional os expõe a essa função deterioradora e severa; servem só para resplandecer, aninhados em rendas, ao gás das soirées, — e para outros usos secretos. As conveniências impedem-me de prosseguir nesta exposição radiosa das belezas que constituem o Fatal Feminino... De resto as suas pupilas já rebrilham... Ora todas estas coisas, Teodoro, estão para além, infinitamente para além dos seus vinte mil réis por mês... Confesse, ao menos, que estas palavras têm o venerável selo da verdade!...
Os meus primeiros meses ricos, não o oculto, passei-os a amar — a amar com o sincero bater de coração de um pajem inexperiente. Tinha-a visto, como numa página de novela, regando os seus craveiros à varanda: chamava-se Cândida; era pequenina, era loira; morava a Buenos Aires, numa casinha casta recoberta de trepadeiras; e lembrava-me, pela graça e pelo airoso da cinta, tudo o que a Arte tem criado de mais fino e frágil — Mimi, Virgínia, a Joaninha do Vale de Santarém.
Todas as noites eu caía, em êxtases de místico, aos seus pés cor de jaspe. Todas as manhãs lhe alastrava o regaço de notas de vinte mil réis: ela repelia-as primeiro com um rubor, — depois, ao guardá-las na gaveta, chamava-me o seu anjo Tótó.
Ao começo da noite um criado, para anunciar o jantar, fazia soar pelos corredores na sua tuba de prata, à moda gótica, uma harmonia solene. Eu erguia-me e ia comer, majestoso e solitário. Uma populaça de lacaios, de librés de seda negra, servia, num silêncio de sombras que resvalam, as vitualhas raras, vinhos do preço de jóias: toda a mesa era um esplendor de flores, luzes, cristais, cintilações de oiro: — e enrolando-se pelas pirâmides de frutos, misturando-se ao vapor dos pratos, errava, como uma névoa subtil, um tédio inenarrável...
Depois, apopléctico, atirava-me para o fundo do coupé — e lá ia às Janelas Verdes, onde nutria, num jardim de serralho, entre requintes muçulmanos, um viveiro de fêmeas: revestiam-me de uma túnica de seda fresca e perfumada, — e eu abandonava-me a delírios abomináveis... Traziam-me semimorto para casa, ao primeiro alvor da manhã: fazia maquinalmente o meu sinal-da-cruz, e daí a pouco roncava de ventre ao ar, lívido e com um suor frio, como um Tibério exausto.
Todos os cidadãos me traziam presentes como a um Ídolo sobre o altar — uns Odes votivas, outros o meu monograma bordado a cabelo, alguns chinelas ou boquilhas, cada um a sua consciência. Se o meu olhar amortecido fixava, por acaso, na rua, uma mulher — era logo ao outro dia uma carta em que a criatura, esposa ou prostituta, me ofertava a sua nudez, o seu amor, e todas as complacências da lascívia.
Para esquecer este tormento complicado, entreguei-me à orgia. Instalei-me num palacete da Avenida dos Campos Elísios — e foi medonho. Dava festas à Trimalcião: e, nas horas mais ásperas de fúria libertina, quando das charangas, na estridência brutal dos cobres, rompiam os can-cans; quando prostitutas, de seio desbragado, ganiam coplas canalhas; quando os meus convidados boémios, ateus de cervejaria, injuriavam Deus, com a taça de champagne erguida — eu, tomado subitamente como Heliogábalo de um furor de bestialidade, de um ódio contra o Pensante e o Consciente, atirava-me ao chão a quatro patas e zurrava formidavelmente de burro...
Sobre a "generala":
Chamava-se Vladimira; nascera ao pé de Nidji-Novogorod; e fora educada por uma tia velha que admirava Rousseau, lia Faublas, usava o cabelo empoado, e parecia a grossa litografia cossaca de uma dama galante de Versalhes...
O sonho de Vladimira era habitar Paris; e, fazendo ferver delicadamente as folhas de chá, pedia-me histórias ladinas de cocottes, e dizia-me o seu culto por Dumas filho...
Eu arregaçava-lhe a larga manga do casabeque de seda de cor de folha morta, e ia fazendo viajar os meus lábios devotos pela pele fresca dos seus belos braços; — e depois sobre o divã, enlaçados, peito contra peito, num êxtase mudo, sentíamos as lâminas de cristal ressoar eoliamente, as pegas azuis esvoaçarem pelos plátanos, o fugitivo ritmo do arroio corrente...
Os nossos olhos humedecidos encontravam às vezes um quadro de cetim preto, por cima do divã, onde em caracteres chineses se desenrolavam sentenças do Livro Sagrado de Li-Nun «sobre os deveres das esposas». Mas nenhum de nós percebia o chinês... E no silêncio os nossos beijos recomeçavam, espaçados, soando docemente, e comparáveis (na língua florida daqueles países) a pérolas que caem uma a uma sobre uma bacia de prata... — Oh suaves sestas dos jardins de Pequim, onde estais vós? Onde estais, folhas mortas dos lírios escarlates do Japão?...