O rio ficou para trás. A lezíria estende-se em todas as direcções, um bordado de castanhos, amarelos e verdes. Azinheiras e enormes eucaliptos ladeiam a estrada, uma fita negra, sem curvas, que corta os campos. O céu é de um cor-de-pérola uniforme, não se distingue a forma das nuvens, não se vislumbra o sol, não há sinal de chuva.
O carro avança.
Marta recosta-se no assento, olhos fixos na paisagem que vão ultrapassando. Num dos campos, um tractor abre a terra e é seguido por um bando de garças brancas que perscrutam os fundos sulcos na terra arenosa. No campo seguinte, três cegonhas fitam a água rasa de um canal, enquanto uma quarta levanta vôo em direcção ao ninho massivo instalado sobre a velha caixa de água de uma quinta em ruínas. Marta desvia os olhos a tempo de ver qualquer coisa pequena apressar-se através do asfalto: uma lagartixa, talvez.
Tantos sinais de vida e o mundo continua a parecer-lhe morto, dormente, pelo menos. Como se ainda não tivesse acordado de uma longa hibernação. Apesar do calor abafado que se faz sentir.
Faz descer mais a janela. O vento quente despenteia-lhe o cabelo. Olha-se no espelho da pala que baixou para se proteger do brilho branco do sol invisível. Há manchas escuras sob os seus olhos, linhas na testa e em redor da boca apertada.
Sérgio ainda não se calou. Conduz com os olhos na estrada e ela nem precisa olhar para o lado para saber que as mãos dele estão tão apertadas em redor do volante que se pode traçar cada osso. Sempre adorou as mãos dele, são grandes e longas, com dedos elegantes e pele macia, dourada. Ele continua a falar, num tom mecânico, que ele quer fazer parecer alegre, sobre coisas que ela não ouve.
Dói-lhe a cabeça. A vontade que tem é de tirar uma das latas de 7Up que estão no compartimento refrigerado entre os bancos e encostá-la à testa. Mas não o faz. Sérgio já está quase à beira da histeria, qualquer sinal de dor da parte dela, agora, vai fazê-lo vir-se abaixo. Vai fazê-lo pensar que tomaram a decisão errada.
A dor insiste, latejando-lhe na têmpora direita. No ponto exacta onde ela sabe que aquilo está. Como se estivesse a crescer, pensa, como se a maldita coisa estivesse a crescer.
E está mesmo a crescer, embora o médico não o tenha dito por tantas palavras, está a crescer e vai continuar a crescer, ou ele não teria sugerido a cesariana. Marta pousa as mãos sobre a sua barriga de sete meses. O bébé está a começar a agitar-se. É da dor, estou a ficar alterada e ele sente.
As mãos rolam-lhe sobre a barriga em círculos que se entrecruzam. Sente um pé espetar-se contra o interior do seu ventre, uma pequena saliência contra a palma da sua mão. Mais dois meses, dois meses não vão fazer diferença. Dois meses só não vão fazer diferença.
– Estás bem? – A voz de Sérgio treme só um pouco.
Ela assente, mas desvia o olhar para a janela.
– Está a dar pontapés.
– É forte. Grande para um bébé de sete meses. Se quisesses, mesmo que estivesse alguns dias na incubadora, os dois meses não fariam diferença …
– Eu vou começar a quimioterapia quando o bébé nascer. – A voz dela é calma, os olhos fixaram-se no pára-brisas onde alguns pingos leves de chuva começaram a cair. – Os dois meses não vão fazer diferença.
A chuva engrossa, começa a fazer ruído no tejadilho do carro. Ela reclina um pouco o assento e olha para cima, através do tecto de abrir, as gotas parecem pequenas bolas de cristal que se dirigem ao carro. Sérgio fechou a janela do lado dela e está cada vez mais abafado.
– Pára o carro!
– Estás a sentir-te mal, voltamos a –
– Não. Pára o carro.
Abre a porta, ainda antes de estarem completamente imobilizados. Já livre do abraço do cinto de segurança, corre para lá do renque de árvores onde as garças se abrigaram, para a lezíria, campo aberto.
As pernas cedem e deixa-se cair de joelhos na erva nova. A chuva rodeia-a, cada vez mais forte, batendo-lhe na testa, desmanchando a dor. Água escorre-lhe pela cara e o sabor a sal brinca-lhe nos lábios. Um triângulo de azul irrompe no meio do cinzento.